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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #211 (António Guerreiro): Prémio e castigo

Por uma espécie de inversão que vale como índice indiscreto do filisteísmo, os prémios literários, na sua maioria, servem para celebrar a instituição que os dá e não para honrar quem os recebe. Nestas circunstâncias, ser nomeado como vencedor de um prémio pode revelar-se um castigo infligido a um autor, que vai ter de se conformar ao cerimonial de afirmação e glorificação alheias como se a festa fosse sua e a tivesse reclamado. Ao recusar que o Prémio D. Dinis, da Fundação Casa de Mateus, lhe fosse entregue pelo primeiro-ministro, Maria Teresa Horta não fez mais do que usar uma prerrogativa a que tinha pleno direito. Visto como um mero gesto de hostilidade da escritora em relação ao poder político do momento, o episódio fica encerrado num estreito espaço, para onde confluem acriticamente apoiantes e detratores. Ora, o que está em jogo tem um alcance mais vasto, de modo a suscitar esta questão: porque é que um prémio literário concedido por uma Fundação que não é tutelada por nenhum Ministério há de convidar um ministro — seja ele primeiro, segundo ou terceiro — a entregar o prémio, obrigando o premiado a ser oficiante numa cerimónia regida pelos protocolos governamentais?  

Se a esta pergunta respondermos que ela está no pleno direito de o fazer, teremos também de responder que o premiado está no pleno direito de recusar. E decorre daqui que deveria também recusar o prémio? Mas esse foi atribuído sem que o premiado se tivesse apresentado a um concurso (portanto, sem dar o seu assentimento implícito ou explícito) por um júri que, presume-se, gozava de plena autonomia. Nunca passou pelas cabeças destas instituições que poderiam estar a cometer uma violência completamente ilegítima e que, na verdade, já muita gente antes da Maria Teresa Horta se sentiu violentada nessas cerimónias — presididas por outros primeiros, segundos ou terceiros ministros — de autocelebraçao do mecenas?

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 29.9.2012.

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