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 Cinema e pensamento | On cinema and thought                                                                              @ André Dias

Ao pé da letra #214 (António Guerreiro): A pilhagem legal

Em tempos não muito recuados, a linguagem rude que reduzia todas as decisões políticas a uma cleptocracia tinha um autor tipificado: os taxistas. Sabemos agora que em determinadas circunstâncias essa linguagem se vai universalizando e até o antigo presidente de um partido pôde dizer que a subida dos impostos é “um assalto à mão armada”; e um cronista e comentador político, que tem um gosto especial pela alarvidade, falou mesmo em sodomização. Concluindo: quando o humor psicopolítico das elites se torna semelhante ao das classes menos cultas, a linguagem também é análoga. Importantes são, pois, as determinações do humor psicopolítico. E esse, como já reparámos, sofreu uma mudança brusca e geral, tendo como motivo mais óbvio os impostos. O paradoxo da “pilhagem legal”, formulado por Tomás de Aquino, passou a fazer parte das conversas: na rua, no táxi, no café, nos jornais e nas televisões.  

Ora, mesmo quem nunca sentiu necessidade de pensar os processos de um Estado fiscal, tem agora motivos urgentes para o fazer, já que o que resta da democracia sofreu um forte embate: o sistema fiscal recorre a práticas absolutistas ‘naturalizadas’ (o filósofo Peter Sloterdijk, num livro de 2010 sobre os impostos, faz essa referência ao absolutismo, indo até mais longe: “Não saímos da Idade Média fiscal”). Mas essa práticas, ao serem exasperadas, levadas a um limite extremo, dão-se a ver na sua arbitrariedade e quebram o vínculo necessário entre os rendimentos do Estado e os benefícios que os cidadãos deles extraem. Enfraquecido esse vínculo aos olhos do cidadão, o modo de arrecadar e justificar os impostos ganha uma dimensão inaceitável para uma ordem democrática. E é aqui que estamos: o humor psicopolítico dominante mostra que já foi transposto um limiar que abre para um território do qual não temos ainda a cartografia, mas adivinhamos que deve ser bastante acidentado.

António Guerreiro, «Ao pé da letra», Expresso-Atual, Portugal, 20.10.2012.

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